sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

EM CARTAZ:


The King's Speech / O Discurso do Rei
de Tom Hooper



Há uma estranha, e contudo curiosa, beleza dramática na História britânica que desde sempre me apelou ao interesse. Talvez seja essa a razão de querer escrever sobre “O Discurso do Rei”, mas, ainda assim, quem resiste a uma dinastia Tudor dominada pelo ciúme e pela traição? Digo, a um Henry VIII pinga-amor, a uma sangrenta Queen Mary I ou a uma eterna Virgem, Elizabeth I? E se for uma apaixonada (e apaixonante) rainha Victoria, que ao lado do seu Albert vingou no Amor e na Arte, ou, para puxarmos a brasa à nossa sardinha, quem resiste a uma lutadora D. Catarina de Bragança que muito fez pelos costumes ingleses que perduram até aos dias de hoje?
São apenas exemplos, é certo, meros nichos cronológicos numa História, por vezes paralela à nossa, que muito ainda tem para oferecer. Uma História e uma Cultura, acima de tudo, porque a Cultura não deixa de ser um subproduto da História. Com efeito, “O Discurso do Rei” tem uma significativa contribuição nesse aspecto. Cinge-se a esta última dinastia, a de Windsor, numa acção que se dissipa entre as décadas de 30 a 40 do séc. XX.

Foi ainda sob o reinado da apaixonada Victoria que nasceu Albert Frederick Arthur George, seu bisneto. Foi o segundo filho de George Frederick Ernest Albert, futuro rei George V do Reino Unido, pelo que muito dificilmente lhe estaria destinado o trono britânico. O seu irmão mais novo teve uma morte prematura e Edward David, o irmão mais velho, sempre foi o filho favorito de George V. Nunca teve, portanto, uma infância particularmente feliz, apesar de todas as mordomias monárquicas; era repreendido pelo pai, faltava-lhe afecto, as aias de nada ajudavam, maltratavam-no, sentia-se intimidado pelo irmão e isso trouxe-lhe graves consequências que o marcaram para a vida: a sua gaguez.
Com a morte de George V, Edward David sobe ao trono como rei Edward VIII, mas por lá não fica durante muito tempo: em menos de um ano, Edward VIII anuncia publicamente a sua paixão por uma americana a caminho do segundo divórcio e que, com ela, pretendia contrair matrimónio. Abdica do trono a favor do amor e, imagine-se, quem lhe sucede na lista é mesmo Albert George, ou rei George VI, o gago, então casado com Lady Elizabeth, posteriormente conhecida como Rainha Mãe. Sejamos sinceros: trata-se de uma história particularmente curiosa; pensamos sempre quais seriam as probabilidades de tal acontecer. E, para nossa sorte, nada disto foi esquecido em “O Discurso do Rei”, muito embora toda esta vertente histórica de que se fala tenha ficado para segundo plano.
Em boa verdade, o filme pretende ser mais do que a recriação dos factos. Senão vejamos: ainda antes do seu marido subir ao trono, Lady Elizabeth terá travado conhecimento com um tal de Lionel Logue, um dúbio terapeuta da fala vindo da Austrália. Convence o marido, Albert George, então Duque de York, a experimentar as “práticas incomuns e pouco ortodoxas”, mas infalíveis no tratamento da gaguez, exclusivas deste suposto terapeuta credenciado, perfeito em dicção, mas péssimo a interpretar Shakespeare. Albert acede, mas cedo se arrepende; o seu temperamento não é propriamente compatível com os métodos de Lionel Logue. Entre remorsos e embaraçosos discursos, Albert decide voltar à terapia como esperança última de conseguir articular correctamente as palavras. É impressionante as dificuldades que demonstra em manter um discurso sem lapsos, pausas abruptas, espasmos musculares e outros descuidos, seja em público ou junto de familiares e amigos. Lionel Logue não desiste, muito convicto nos seus próprios métodos e nas suas capacidades, procura uma relação de amizade e confiança com Albert George, porque só assim se chegaria ao sucesso.


“O Discurso do Rei”, na sua essência, explora a relação entre Lionel Logue e o rei George VI, ou Bertie, como lhe veio a chamar. Focaliza-se numa amizade que quebrou muitos limites, impensáveis numa casa real britânica. Mostra a inteira confiança que um rei deposita num suposto “doutor” que lhe promete milagres; e Bertie, já farto de berlindes e de cigarros compulsivos, aceita as condições impostas e despreza as habituais intrujices religiosas.
Lionel Logue terá acompanhado George VI até ao final dos seus dias, ajudando-o em todos os seus discursos e emissões radiofónicas dirigidas ao Império Britânico. Contudo, este “Discurso do Rei” está limitado num tempo muito concreto, mas não é por acaso que isso acontece. Efectivamente, foi no final da década de 30 que despoletou a Segunda Guerra Mundial. Neste contexto, os discursos da casa real britânica ganharam mais ênfase e uma importância decisiva na História do Reino Unido, especialmente porque foram proferidos por um rei gago. É um facto bastante curioso, mas Lionel Logue estava lá, fez progressos impressionantes, mas muito se deve também à força de vontade de um rei que supera os medos e os fantasmas do passado, perante a obrigação e a responsabilidade monárquica.

“O Discurso do Rei”, embora se prenda neste tema de grande interesse, não chega a ser um filme surpreendente nem impressionante, mas com certeza é merecedor de todas nomeações de que tem sido alvo. Destaca-se, sem qualquer sombra de dúvida, por um Colin Firth gago e tímido, impaciente e corajoso, como George VI, claro; por um Geofrey Rush humilde, honesto e perspicaz, como Lionel Logue; e por uma glamorosa e encantadora Helena Bonham Carter como Lady Elizabeth, não desconsiderando os rigorosos e frios Goerge V e Winston Churchill, este último também desprezível, respectivamente interpretados pelos veteranos Michael Gambon e Timothy Spall.
Tom Hooper faz um trabalho incerto. Por vezes bastante linear e académico, sem nada de novo, e por vezes zonzo, em planos enjoativos que quase nos fazem entrar pela garganta de George VI adentro - não sei se terá sido muito feliz nessa escolha, embora se compreenda perfeitamente a intenção. A mise-en-scène é extraordinária, como de resto se esperaria que fosse, mas, nesta área técnica, Alexandre Desplat ganha aos pontos por uma exímia banda sonora original que, esta sim, nos entra pelos ouvidos e garganta adentro sem nos enjoar.


Relembra-se que “O Discurso do Rei” tem 12 nomeações para os Oscars da Academia; parece-me a mim que, infelizmente, não terá muita sorte e será um dos grandes condenados da cerimónia, não arrecadando mais do que umas escassas duas ou três estatuetas, incluindo a de Melhor Actor Principal que pode ser já dada com certa. Mas convém deixarmos margem para as surpresas, porque os Oscars, de uma maneira ou de outra, acabam sempre por nos surpreender. É a missiva deles, ou pelo menos assim parece ser; ficaremos, portanto, ansiosos pelos resultados.

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