sábado, 18 de julho de 2009

CINEMA: "The Girlfriend Experience" e as Experiências de Soderbergh


Finalmente tenho aqui um excelente motivo para expor um pouco acerca de Steven Soderbergh e das suas experiências cinematográficas quase desconhecidas do grande público, curiosamente bem recebidas pela crítica e muito mal recebidas pelo público em geral - já por várias vezes li comentários de pessoas que consideravam os filmes experimentais de Soderbergh como os piores alguma vez feitos em toda a história do Cinema. Cada um terá as suas opiniões, mas não se deixem levar por estes insensatos comentários que, muito provavelmente, são proferidos por quem se dedica ao cinema meramente comercial - nada tenho contra isso, mas é radical dizer-se tão mal dos filmes experimentais do Soderbergh. Antes de tudo, o Cinema é uma experiência, ou um conjunto de experiências, se assim o preferirem. Tal como um pintor experimenta cores, tintas e materiais diversos numa tela, o realizador também gosta de experimentar técnicas, estilos e situações cénicas num filme (eu costumo usar bastante o exemplo do artista plástico porque, ao ter estudado Pintura, torna-se muito mais fácil de exemplificar a situação do realizador por analogias, ainda que possam não ser as mais indicadas).
Pois bem, Steven Soderbergh é um autor, no verdadeiro sentido da palavra, Americano oriundo de Georgia, Atlanta. É realizador de Cinema - área onde mais de destaca -, Director de Fotografia (quase sempre sob o pseudónimo de Peter Andrews), Argumentista (por vezes sob o pseudónimo de Sam Lowry), Editor (usualmente sob o pseudónimo de Mary Ann Bernard) e também já deu uma mãozinha na representação (além de trabalhos menores como Compositor e demais trabalhos em departamentos de som e eléctricos de estúdio).

Cedo se notabilizou com os primeiros filmes que realizou, desde "Sexo, Mentiras e Vídeo" (1989), passando por "Kafka" (1991) até "Erin Brockovich" (2000). Soderbergh sempre deu provas suficientes do bom trabalho que faz, especialmente com este último onde vemos uma belíssima Julia Roberts num dos melhores e mais bem interpretados papéis da sua carreira, não descorando filmes que entretanto surgiram e que, da mesma forma, contribuíram para a afirmação de Soderbergh, entre eles "Gray's Anatomy" (1996) e "Schizopolis" (1996).
Até à data, Soderbergh sempre tem trabalhado em conjunto com grandes estúdios e confunde-se muito com banais realizadores de Hollywood ao trazer-nos filmes virados para grandes massas de público, mas impingindo muito subtilmente - seja na realização, na cinematografia ou na edição - pequenos excessos da sua personalidade que o distinguem de entre os medíocres. São exemplos disso "Traffic" (2000), "Ocean's Eleven" (2001), "Solaris" (2002), "Ocean's Twelve" (2004) e "Ocean's Thirteen" (2007).
Contudo, tal como um pintor que experimenta dezenas de vezes até atingir um produto final desejado, Soderbergh também vai exercendo e exercitando a sua destreza, brindando-nos com uma série de pequenos filmes - pequenos em termos de produção e de financiamento - que me dão muito gozo assistir. Especialmente vou referir aqui 3 desses filmes - creio que também não haverá mais nenhum, se houver não vi e desconheço - que muito dizem sobre o verdadeiro Soderbergh. Mas acaba por ser muito mais do que isso. Dar vida a estes filmes é o culminar da expressividade de um autor enquanto contador de histórias - o Cinema serve para isso mesmo. Desprezando o supérfluo e cingindo-se ao estritamente necessário, Soderbergh confronta-nos com uma situação insólita, ou um conjunto de situações e/ou acontecimentos que, numa situação normal, muito provavelmente não aconteceriam e explora-a e desenvolve-a o mais que possa, não querendo levá-la (ou manipulá-la) a encaminhar-se para uma via que possa parecer mais ficcional. É óbvio que tudo isto não passa de uma ficção, mas o conceito é a experimentação através da casualidade, muito realista e nada novelista. No fundo, o efeito acaba por ser o mesmo que uma situação real ainda que não se trate disso, é apenas uma suposição de uma acção quase no limite da absurdez e que em muito transcende o insólito.

O primeiro filme que encontramos sob esta perspectiva (Soderberghiana, dir-se-á) foi "Full Frontal" - "Vidas a Nú" (2002). Por enquanto, este foi o único filme experimental de Soderbergh a chegar às salas de Cinema Portuguesas. Às tantas, a experiência (de o estrear em Portugal) correu tão mal que se deixaram de fazer mais isso - é uma plausível explicação. Curiosamente, a primeira vez que vi o filme foi através da RTP que, vá lá saber-se porquê, passaram o filme numa bela noite de Verão há 4 ou 5 anos atrás. Mais tarde, encontro o filme à venda em DVD num dos nossos hipermercados e foi assim que o consegui rever - entretanto já o revi outra vez para escrever este pequeno parágrafo - já que as epifanias da televisão portuguesa são de muito pouca dura - já houve tempos muito melhores, já...
"Full Frontal - Vidas a Nú" é extraordinariamente bem feito. A acção passa-se em Hollywood, num grande estúdio de Cinema onde um grupo de actores se prepara para a gravação do filme Rendez-vous. No meio de tudo isto, o Realizador/Produtor Executivo - o manda-chuva de toda a operação cinematográfica - faz anos e convida toda a equipa de produção (e afins) para uma valente festa, mas até aí chegarmos muito se vai passar.
O que aqui vemos é um retrato da vida que muitos sonham em ter. A fama e o glamour que tantos consegue atrair para o meio artístico são aqui explorados através de uma visão quase documental da vida de um actor, argumentista, produtor, realizador, etc., etc.: a câmara acompanha-os nas suas conversas, nas suas discussões, nos gastos exorbitantes, nas festas, nas gravações e em tudo quanto mais é possível. E, quando menos se espera, insere-se uma situação imprevista e invulgar capaz de abalar a vida daquela gente tão soberana e senhora de si mesma. O objectivo é somente o da exploração das reacções de cada uma dessas pessoas - envolvidas na produção do filme - perante uma situação estranha naquele mundo quase intocável, imbatível e muito restrito.
Até que ponto esta situação pode influenciar a continuação da produção do filme, o trabalho dos actores e da equipa técnica?
Como é que cada um dos elementos se vai sentir e reagir com a situação com que se depara?
De que forma é que as relações entre as personagens vão ficar afectadas?
É este tipo de questões que Soderbergh pretende explorar - e não necessariamente respondê-las -, sem ambições maiores, apenas e quase exclusivamente pelo puro divertimento que a situação proporciona. Toda a acção está muito bem encadeada, mesclando o documentarismo ficcional com a ficção propriamente dita. Por um lado há actores que interagem nos intervalos das gravações do filme, idas aos cafés, bares e lojas através de filmagens quase amadoras e, por outro lado, há o trabalho de actores dos actores, o filme dentro do filme onde encontramos a verdadeira ficção no meio de tudo isto. Pelo caminho ainda descobrimos actores no papel de si próprios e a interligação entre as cenas é tão boa que ficamos perdidos entre a ficção e a realidade (ficcionada). Note-se que, mais tarde, Soderbergh aplica este excelente conceito dos actores no papel de si mesmos, indo até mais além com a fantástica cena da Julia Roberts em "Ocean's Twelve": Julia Roberts interpreta Tess que se vai fazer passar por Julia Roberts (grávida dos gémeos, repare-se) para o plano do grande assalto aos Ovos Fabérgé. Também David Lynch consegue muito bem fazer algo semelhante na mistura entre a realidade e a ficção - ainda que nada tenha a ver com este filme em si - no filme "Inland Empire" (2006), mas isso já não é novidade nenhuma. David Lynch é extraordinariamente bom em tudo o que faz!
Mas, voltando ao assunto, e feitas as contas, esta primeira experiência de Soderbergh sai vencedora em todos os aspectos. Faz suposições, coloca questões, faz-nos pensar, tem tanto de concreto como de vago, mas tudo se vai processando, a um ritmo lento, claro está, e nós lá nos deixamos levar pela corrente envolvendo-nos num mundo tão frágil quanto não aparenta ser.

O segundo filme que aqui também gostava de referir é "Bubble" (2005). É um desgosto enorme não termos tido este filme nas nossas salas e ainda é um desgosto maior não o encontrarmos disponível no mercado de DVD nacional - pelo menos eu não encontrei. Mas também é difícil de o encontrarmos à venda em qualquer loja lá fora. Para quem se interessar, aconselho a procurar no Amazon porque foi lá que o encontrei.
Mas, avançando, este filme é, de facto, extraordinário, superou largamente as minhas expectativas e, curiosamente, este é o filme que tem suscitado os comentários mais díspares por parte de quem o visiona: uns chamam-lhe obra-prima e outros chamam-lhe de o pior filme de sempre! Para mim, não é nem um nem outro, mas é uma excelente obra que merece a nossa atenção por tudo quanto é abordado em termos psicológicos e do que é humanamente possível de acontecer ao virar de cada esquina.
É precisamente onde se passa a acção deste filme, numa qualquer esquina esquecida da América, uma pequena cidade de indústrias que agora está a desertar e apenas a população mais persistente insiste em conservar um passado que há muito já se perdeu. Todo o conceito abordado puxa para o tradicionalismo, para o conservadorismo, para o que acontece muito nos subúrbios Americanos, todas as casas com a mesma forma e feitio, os mesmos jardins arranjados, e as pessoas, apesar de diferentes, sofrem para pensar da mesma forma, para terem as mesmas opiniões que os vizinhos, estagnados de emoções como se fossem produzidos em série, uns a seguir aos outros...
Este é o conceito mais presente ao longo do filme, curiosamente onde os personagens trabalham numa velha fábrica de bonecos, produzidos em série, sem emoções, uns atrás dos outros. A vida está tão cingida e meticulosamente comparada a uma indústria e aos seus produtos. Todo o filme funciona assim como uma crítica a este tipo de pessoas tão fracas de opinião e insossas que olham de lado sempre que alguém procurar superar esta repressão.
Mais concretamente, o filme segue Martha, a personagem central, tão bem educada, trabalhadora - na fábrica de bonecos - uma simpatia de senhora que sabe muito bem o que quer e que está sempre lá para ajudar quem precisa. Todos vêm Martha como uma amiga, até o inesperado acontecer - Soderbergh é muito dado a este género de situações insólitas que nos caem no filme como uma bomba. Uma vez mais, qual será a reacção que os colegas de Martha vão ter em relação ao sucedido? Será que vão continuar a ver Martha da mesma forma? Compreenderão eles o que se passou? Há todo um conjunto de questões que é necessário explorar com a situação criada e somos sempre levados a tomar essas questões e a tirarmos conclusões por nós próprios. Claro que a mesquinhice fica sempre por cima, mas seria necessário levar o caso àquele extremo?
O meu colega e amigo Matt Mascaro - conhecemo-nos porque eles fez um filme a partir de um poema, tal como eu, e desde então temos vindo a partilhar algumas experiências - é um fã incondicional do "Bubble" e das experiências de Soderbergh. Ele nasceu em Nova Iorque, mas actualmente trabalha em Los Angeles como artista conceptual na área cinematográfica - tem instalações de vídeo bastante interessantes. Teve então a oportunidade de entrevistar a estrela de "Bubble", a actriz Debbie Doebereiner, uma completa anónima oriunda de Ohio, que Steven Soderbergh descobriu e contratou especialmente para fazer o papel de Martha, à semelhança dos outros papéis que vemos no filme - os actores são totalmente amadores. A entrevsita está disponível aqui, mas aconselho a ver o filme primeiro ou ficarão a saber mais do que o necessário... Tal como disse ao Matt Mascaro, Soderbergh explora neste filme o comportamento humano e a complexidade da mente (entre outros), i.e., no fundo, todos pensamos como a Martha e também todos temos as mesmas raízes e somos todos iguais uns aos outros tal como os bonecos que os personagens estão meticulosamente a produzir. Vejam a entrevista, mini-documentário:


Por último, resta-me fazer uma pequena referência à última experiência de Soderbergh, estreada há muito pouco tempo, "The Girlfriend Experience" (2009) - uma vez mais procurem no Amazon se estiverem interessados porque por cá não o encontram. Na verdade este foi o filme que me levou a escrever todo este texto ainda que, inicialmente, não previa que se tornasse assim tão extenso... Foi um mote suficiente para me fazer rever a obra do realizador e que é, sem dúvida alguma, exemplar. Note-se que no meio de grandes produções hollywoodescas, Soderbergh consegue, por um lado, impingir o autor que é em pequenos aspectos dessas grandes produções e depois surge em grande, com o que verdadeiramente sente necessidade de fazer, e traz-nos assim o seu cinema, as suas tão peculiares experiências.
"The Girlfriend Experience" não traz muitas diferenças a nível estilístico. Continua a ser o seu típico filme retraído, contido e de ritmo lento - não é necessariamente um ritmo imposto, mas é um ritmo que segue a acção, as emoções e dá-nos tempo para assimilarmos e analisarmos com o pormenor que é exigido - que prima por uma situação insólita num contexto já de si fora do comum.
Se bem repararmos, este filme começa a ser uma experiência logo a partir do título: "A Experiência da Namorada". E não é mais do que isso, se quisermos simplificar a situação; não é mais do que uma experiência que Soderbergh procura levar a cabo tendo por base a figura da "namorada", ou seja, tendo em conta uma relação pré-estabelecida e, a partir daí, dá-lhe uma desenvoltura capaz de nos fazer reflectir nos valores da confiança e até que ponto podemos mexer com ela, fazer uso e abusar dela (da confiança). Também há um óptimo exemplo cinematográfico que tem em conta o valor da confiança numa relação, "Indecent Proposal" (1993) de Adrian Lyne. Mas este filme vai um pouco mais além e acaba até por estabelecer outras circunstâncias que levarão a estabelecer outros valores além da confiança num relacionamento.
Começamos então com a famosíssima actriz que intrepreta o papel principal, o da namorada, Sasha Grey, uma actriz de filmes pornográficos que, com apenas 21 anos, conta com mais de 160 filmes no curriculum... No filme, Sashga Grey é Chelsea, uma Call Girl de luxo - diamos que é um papel bem mais soft do que aqueles que costuma interpretar. Não sei se compreendo muito bem o porquê de Soderbergh ter escolhido uma actriz desta envergadura, mas acho muito curioso esta escolha tão peculiar - Sasha Grey não fez outro género de filmes na vida, é uma virgem nas produções cinematográficas de Hollywood, para não falar de cinema de autor. Chelsea é uma personagem bastante interessante pelo simples facto de ser uma prostituta de luxo que mantém uma relação com um Personal Trainer aberta e sem tabus. É mesmo verdade. A prostituição é vista da forma mais razoável possível, nada de extraordinário, tal como um emprego normalíssimo, com todas as ambições inerentes. Chelsea não quer perder os seus clientes e por isso aceita uma proposta vinda de um crítico da prostituição. Ela passa uma noite com ele em troca de uma boa crítica que a fará subir no ranking e, quiçá, aumentar preços e clientes. Mas no meio disto tudo, há um cliente que faz despertar a atenção de Chelsea, não se sabe bem porquê, mas é o suficiente para a fazer acreditar que a esta relação devesse evoluir para algo mais. E em que lugar fica Chris (o namorado Personal Trainer)? Até porque Chris também tem um emprego a manter, também tem as suas ambições e até pondera em mudar-se para um ginásio maior e mais influente, da mesma forma que Chelsea aceita a proposta do crítico para manter a sua posição na profissão. Tal como ela, Chris também luta para manter viva a relação de ambos não obstante todas as adversidades. Penso que por aqui já é bem possível ter uma ideia básica dos aspectos focados ao longo do filme. Como sempre, há um conjunto de questões fulcrais que vão surgindo e vão obtendo - ou não - as devidas respostas. Há esta exploração tão intrínsica de valores humanos e que é muito capaz de nos fazer mudar de ideias em relação a certos aspectos - por exemplo, na maneira de vermos o trabalho de uma Call Girl, fingido e muitas vezes frio para não cair (mais) na tentação ou não houvesse uma relação onde a confiança sobrepõe-se, supostamente, acima de todos os aspectos.
É nestas pequenas sngularidades que vemos o trabalho de Soderbergh da melhor forma; é extraordinário como, a partir de uma situação, somos levados a aceitar uma condição que tem tudo para ser real - diria até um microcosmos porque é muito possível que coisas destas aconteçam por este mundo fora - e assim vai explorando a acção, experimentando as reacções e conseguimos com isso assistir a casos (de vida, talvez) inimagináveis mas tão reais como eu estar neste momento a dar um ponto final a este texto.


5 comentários:

João Ruivo disse...

Tenho isso aqui em lista de espera para ver faz meses...

Talvez veja um dia, mas não está no topo das prioridades!

Astrid disse...

Poxa, vou te dizer... não é um post é quase um aula de cinema... gostei!

Beijos, flores e estrelas *****

Unknown disse...

Pois, se calhar excedi-me...

entusiasmei-me demais com o assunto e foi no que deu!

Beijosss!, do
Helder

Astrid disse...

;) Agora fiquei com vontade de ver o "Gilfirend"...
Beijos, flores e estrelas *****

Bruno Teixeira disse...

Já tenho aqui o filme para ver... só vou adiando adiando adiando porque me pareceu ser um filme muito parado!
Tal como dizes no teu texto: "Continua a ser o seu típico filme retraído, contido e de ritmo lento..."!
Bem, assim como o Runcolho, este filme não está no topo das minhas prioridades... mas assim que o vir dou-te a minha opinião!

Abraço