domingo, 20 de julho de 2008

MEMÓRIAS DE UM ELEVADOR


Em luz de lua cheia, sob noite abafada e calorenta, estava em aposentos usuais aquele elevador, solitário no seu mundo, fechado, vazio, vertical, iluminado por uma força maior, vinda de céus imaculados, botões apetecíveis no seu interior, que pedem incessantemente para lhes pressionarmos com suavidade angelical.
Um, dois, três… e vai subindo e subindo.
Quatro, cinco, seis…
Pára.
De seu interior frio e fracamente acolhedor, luz amarela, vem passageiro de hábito.
Logo, alguém necessita de auxílio e elevador que é elevador não tem mais que obedecer a outra paragem.
Traz em seu regaço ricos e pobres. Novos e velhos. Pais e filhos. E todos saem indiferentes e isentos de compaixão para com o seu trabalho árduo e talento inato para a monotonia.
Que ao menos lhe dessem ponta de conversa, que lhe perguntassem “como vai a vida, Sr. Elevador?”, que lhe peçam a mísera permissão para entrar. Mas ninguém o faz e dele todos abusam, várias vezes ao dia, para cima e para baixo, para baixo e para cima, sob cabos traccionados que puxam até ao limite, que se rompem em si, para satisfazerem as necessidades dos abusadores.
E assim continua a vida de um elevador.
Só.
Silenciado.
Em perpétuo movimento vertical.

Enfermeira recém licenciada, menina de bem que ali havia morado, vem visitar quem lhe deu à luz. Acabada de sair do emprego, ainda com bata branca a dar bem acima do joelho, pernas oferecidas, o sapato preto de salto alto em contraste com cabelo louro preso num apanhado em cabeça de pele clara e olhos azuis.
Espera e entra.
Ainda não estava a meio da viagem ascensorial quando o transporte se deteve para entrada de novos passageiros. A conversa parecia ir já longa entre o casal do 3º Direito que agora ia a entrar. Deparam-se com tamanha brutalidade, a vista a ferir, na enfermeira ali encostada ao fundo, o espelho a reflectir as linhas curvas da sua anca.
“Vai descer?” pergunta o casal quase em uníssono.
“Não, não. Vou subir.” disse-lhes ela.
A mulher aprontava-se em falar, mas o marido precipitou-se, falando mais rápido que a própria esposa, dirigindo palavra a ser tão belo, um anjo talvez, enfermeira de profissão.
“Não tem mal. Nós aproveitamos a boleia até lá acima e depois descemos.”
“Como queira.” respondeu-lhe a enfermeira, deixando-o embriagado a éter pelas palavras dirigidas.
A viagem foi em silêncio. Sob olhares devoradores, de desejo e traição. Outros olhavam de inveja, extasiados de perfeição contida num único ser.
O “plim” emitido anunciava a paragem no andar superior. O toque indesejado por uns e ansiado por outros, gastos de tanto silêncio e timidez que o elevador oferecia. Ninguém se pronunciava durante uma e qualquer viagem. Ficavam ali parados, a olhar, à espera. Pobre elevador, de vida estreita e embutida na verticalidade de um edifício, sem nome, sem jeito, dado a medos e anseios, provido da mudez dos passageiros que ali ficavam à espera de mais alguma coisa além da ascensão.
Sai a enfermeira no andar desejado, olhares postos à sua passagem. Fica no elevador a essência da sua presença, um rasto fino de elegância dum bom perfume e duma suave mesclagem com éter, suficiente para o marido, disfarçadamente, se deixar seduzir.
A porta fecha-se, a ilusão desvanece e a viagem é retomada, em silêncio.
Mais um “plim” que anunciava o final da viagem.
Abre-se a porta. Mais clientes esperavam ansiosamente no piso térreo. Uma criança entre adultos, um ser tão pequeno que fitava a robustez do elevador de baixo para cima. E de baixo para cima este parecia mais severo, mais austero, mais alto, mais vertical, mais silencioso e mais solitário. Intimidava a pequena criança, de pobre inocência, agarrada ao urso de pelúcia e assustava-a no seu intento. Que medos e anseios viriam a consumir tão angélica e frágil criatura à entrada do assustador paralelepípedo ascendente.
“Boa noite.” disse o casal à saída.
“Olá, boa noite.” respondeu-lhes um dos vizinhos do 4º Direito. “Como têm passado?”.
“Estamos muito bem, obrigada.” Disse a esposa. “E como estás tu, meu pequenote?” continuou a esposa dirigindo-se ao filho dos vizinhos.
A criança não lhe respondeu fechando-se ainda mais na sua timidez. Um elevador repulsivo e uma vizinha arrogante a ajudar nos pesadelos de uma pobre criatura que há pouco veio ao mundo.
“Hoje está com vergonha.” desculpavam-se os pais.
A pouca timidez entre os casais já era de longa data. Ficaram ali, em átrio vazio, de ecos e assombros, embrenhados em conversas de dia-a-dia. Fitavam momentaneamente o elevador, personificação do silêncio, ali parado, à espera de ser usado uma vez mais. Aproveitou a distracção dos adultos e a curiosidade da criança para se dar a entender, para que o esforço lhe fosse reconhecido, para que lhe dessem mais valor, sem solidões, silêncios ou monotonias. Queria a compreensão da sua amargura, da sua simplicidade, da linearidade da sua alma e da sua constituição, a descer e a subir a proveito de outros.
E continuou no seu silêncio, à escuta das conversas que não ouvia no seu interior, conversas tão desejadas, tão ansiadas que demais lhe trariam a vivacidade da alma.
Uma palavra daqui, uma frase de acolá.
Assim escutava, no seu silêncio.
O menino continuava parado. Admirado da imponência, consumido de medos à sua aparição rectangular. Fora a primeira vez que tivera a oportunidade de o observar convenientemente. Do menino para o elevador. Do elevador para o menino.
Distraídos do quotidiano discutido no átrio, fixaram-se mutuamente, o elevador e a criança. Agarrou com mais força no urso de pelúcia, aconchegando-o no seu peito, para que este não tivesse medo do que se lhes deparava.
O elevador ali se manteve. Fixo. Iluminado. À espera de alguém. Ainda à escuta, mas distraído na presença de tão frágil e amedrontada criatura.
O tempo passou.
Continuaram os dois a olharem-se mutuamente, compreendendo-se, de um para o outro, de fronte a fronte. E assim estabeleceram um diálogo no mergulho profundo do silêncio. Sem boca nem ouvidos. Falaram entre si pela alma. Estabeleceram um diálogo de compreensões, ditaram os medos, os gostos, as amarguras, os anseios, as paixões. Ficaram ali indefinidamente, devolvendo olhares que levavam e traziam palavras e sons que mais ninguém ouvia. Só os dois, naquela noite, ouviram-se para sempre.
As azáfamas do dia-a-dia tiveram as horas contadas e o menino preparava-se agora, extasiado de alegria interior, para ser coberto e recolhido no interior de um alter-ego. Um ser que a si se assemelhava, no silêncio, na timidez, na dor e no sofrimento.
A viagem assim continuou. Muda, como sempre fora. Só um “plim” foi audível, já no final, quando a porta se abria, a dar entrada a novos ares, a novos espaços mais amplos, mais acolhedores, menos silenciosos.
A criança saiu.
Levado pela mão, afastado de quem o compreendia verdadeiramente, a olhar para trás, no vislumbre final do interior daquele elevador. A porta a fechar, o diálogo a cessar paralelamente.
Como uma despedida sentida, em adeus intemporal, afastaram-se os dois por forças maiores.
E o silêncio voltou.
Noite após noite.
A subir e a descer. Sempre à espera de diálogos. De outros diálogos. De novos encontros. De novas compreensões.
À espera de ascensões que o iluminassem.
À espera.
Sempre à espera.
E assim continuou a vida de um elevador.
Vazio.
Calado.
Em perpétuo movimento vertical.


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http://elevadorantologia.blogspot.com
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e outros contos

sábado, 12 de julho de 2008

domingo, 6 de julho de 2008

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Hotel em Londres, somente para 2 noites.
Apenas deve ser barato, mas preferencialmente muito barato.
Agradece-se qualquer ajuda.



quarta-feira, 2 de julho de 2008

TEATRO: Um Violino No Telhado


O Teatro Rivoli estreou, no passado dia 27, o espectáculo de Filipe La Féria, “Um Violino no Telhado”.
“Um Violino no Telhado” é um dos maiores clássicos do Teatro Musical que, pela primeira vez sobe à cena em Portugal, inspirado na obra do pintor Marc Chagall que foca a vida de uma pequena comunidade judaica na Rússia, em vésperas da Revolução de Outubro de 1917. A música de Jerry Bock e o libreto de Joseph Stein fizeram de “Um Violino no Telhado” uma obra universal.
Há um provérbio yiddich que diz “o sucesso tem muitos pais, o fracasso é órfão”, provérbio que se aplica à maravilha no sucesso mundial de “Um Violino no Telhado” cujos pais, além dos autores, foram as histórias e as tradições do povo judeu, num período de crise e desintegração perante uma sociedade hostil.
“Um Violino no Telhado” foi um enorme sucesso na Broadway, sendo representado praticamente em todo o mundo, desde o Japão até agora em Portugal.
Grande parte do êxito de “Um Violino no Telhado” deve-se a personagem do seu protagonista, o filósofo leiteiro Tevye, que é representado por José Raposo num papel que lhe exige todos os recursos do seu talento. Ao seu lado reaparece Rita Ribeiro, uma grande actriz do Teatro português que, após dez anos de afastamento, volta a trabalhar com La Féria. Joel Branco tem em “Um Violino no Telhado” mais um grande desafio na sua já longa carreira ao interpretar Lazar Wolf, o avarento e libidinoso carniceiro. Hugo Rendas irá ter em “Um Violino no Telhado” um papel importante após ter sido galardoado com o prémio de actor-revelação do ano passado pelo seu trabalho em “Jesus Cristo Superstar” pelos leitores do blog Guia dos Teatros. Helena Rocha interpreta Yente, a casamenteira. Todos os outros 58 intérpretes são oriundos do Porto. Actores consagrados como José Pinto, que interpreta a personagem de Rabi e Alexandre Falcão, o taberneiro, juntam-se aos novos talentos como Sara Lima (a Maria Madalena de “Jesus Cristo Superstar”), Mafalda e Cátia Tavares, Ruben Madureira, Rui Andrade, Carlos Meireles, Inês Soares, Bruna Andrade, Nuno Martins, Pedro Xavier, Rogério Costa, etc.
Para desempenhar e dançar os papéis de Cossacos, La Féria trouxe da Ucrânia quatro bailarinos que irão surpreender o público com a sua exímia e rigorosa arte nos bailados russos dirigidos por Inna Lisniak. António Leal foi o director de vozes e Telmo Lopes (também ele vencedor do Prémio de Melhor direcção musical por “Música no Coração votado pelos leitores do Guia dos Teatros) o director musical nesta superprodução que teve uma grande estreia na cidade do Porto no dia 27 de Junho.


in blogue Guia dos Teatros

Mais informação sobre este musical em http://www.umviolinonotelhado.com/

terça-feira, 1 de julho de 2008

CINEMA: Bin-Jip (Ferro-3)

Bin-Jip, traduzido em Inglês para 3-Iron, ou em Português para Ferro-3, é uma nova demostração das capacidades do cinema asiático, que cada vez mais se expõe e agrada ao público em geral, apesar da grande carga simbólica que o sustenta.
Um filme do ano 2004, do realizador Ki-duk Kim (Primavera, Verão, Outono, Inverno... e Primavera) que ultrapassa as espectativas de quem esteja à espera de uma bela e simples história de amor. É muito mais do que isso. É uma alegoria ao que há de bom na vida. Uma Ode ao que é belo, ao que se suaviza e simplifica, como um voo de Primavera. É a materialização do equilibrio que há na vida, personalizado na aproximação de dois seres que se apaixonam. É vermos o amor surgir e a construir-se de dia para dia, sob constantes adversidades, atacado por todos os lados, mas a continuar vivo, sempre presente na ausência do amado.
É este cinema que nos alegra a alma. Que nos completa e nos surpreende. É uma força maior que nos prende a duas almas apaixonadas, vivendo o seu amor incondicional, as aventuras e desventuras, as tristezas e as amarguras...

Ki-duk Kim realiza um excelente exercício simbólico, onde o amor entre duas pessoas surge como um equilibrio perfeito da humanidade, num estado de espírito de união, como um só. Uma narrativa visual perfeita, que nos mostra a ligação intrínseca entre Sun-hwa e Tae-suk sem diálogos entre os mesmos. É a leveza dos gestos, a simpatia das emoções, a doçura dos olhares, o arrepio do toque dos seus corpos que nos fazem sentir esse amor, sem limites, de incomparável elegância e subtileza, onde deuses não ousam intrometer-se. Duas almas que se compensam e que tudo farão para assim continuarem.

Ferro-3 conta a história de Sun-hwa, um jovem sem lugar para viver e que engendra um plano que lhe dá um lugar decente onde dormir e viver, diferente de dia para dia. Sun-hwa distribui panfletos publicitários, logo pela mãnha, colando-os nas fechaduras das portas de casas habitadas. Ao final do dia, Sun-hwa regressa ao local e verifica quem ainda tem os panfletos colados na fechadura. A presença dos mesmos denuncia a ausência dos donos da respectiva casa, pelo que Sun-hwa pode entrar livremente nessa casa sem ninguém dar conta disso. Do bom coração que tem, Sun-hwa procura realizar os afazeres da casa, roupa suja para a lavar, relogios para concertar, aparelhagens para arranjar... Como forma de pagamento pelo serviço prestado, Sun-hwa "pede" apenas comida e estadia para a noite. No dia seguinte retoma o seu caminho, distribuindo novos panfletes para conseguir novo local para passar a noite seguinte.

É neste dia-a-dia que Sun-hwa se depara com inúmeros problemas. Num desses dias, Sun-hwa entra em casa de Tae-suk, aparentemente deserta e desocupada momentâneamente. O silêncio e o sofrimento de Tae-suk são demasiadamente interiorizados para serem percebidos à priori por Sun-hwa. Como sempre, a roupa aparece lavada, a balança é equilibrada, serve-se de um banho, de uma refeição e de uma cama até ser surpreendido pela presença de alguém. Tae-suk surge-lhe amargurada, lesionada, destruída de amor e compaixão. Sofrida de uma violência sem culpa, por um marido de mau carácter e desconceituado do equilibrio e elegância da vida. Tae-suk liberta a mulher desse sofrimento e leva-a consigo numa experiencia de vida que os vão deixar juntos para sempre.
Tae-suk e Sun-hwa começam a vida juntos, de panfleto em panfleto, de casa em casa. O terrível anuncia-se, uma morte acidental entrava o caminho dos personagens.
É no decorrer de uma separação forçada que Sun-hwa e Tae-suk procuram, de qualquer forma, estar juntos. Entre a culpa e a inocência, somos transportados para um meio sentimental, onde o amor é a resposta ao sentido da vida. Onde a ausência deixa uma lacuna na alma que não pode ser compensada. Onde a arte da invisibilidade é a solução de uma aproximação eminente, que se estabelece num equilibrio perfeito entre dois seres, silenciados de corpo e alma.

Uma técnica inigualável na concepção deste filme, que passa muito pelo que de bom se tem feito na China, Coreia e Japão. Um domínio absoluto do silêncio, desprendendo-se do que é supérfluo e enfatizando o elegante, o simples, o belo e o subtil.
Uma óptima direcção musical, um texto soberbo e uma realização merecida. Uma obra que deve ser vista várias vezes, que passa para o espectador o simbolismo de uma relação.
Muito se diria acerca de Bin-jip, mas muito do que mostra Bin-Jip deve ser entendido por cada um e à maneira de cada um.